domingo, julho 12, 2020

Recomeçar

O meu artigo desta semana no zerozero.
O castigo de Tântalo ficou memorável: um suplício de fome e de sede eternas. Assim, mergulhado em água até ao pescoço, quando Tântalo se debruçava para beber água, esta desaparecia. Para além disso, por cima da sua cabeça pendiam ramos de árvores com frutos saborosos, o vento retirava do seu alcance sempre que tentava chegar-lhes.

Para os vitorianos o suplício de Tântalo chama-se ano zero!
E é um suplício que os persegue desde há dezasseis anos a esta parte, com raros intervalos, porque cada vez que  parece que o sucesso veio para ficar logo este dasaparece por si só como a água ou algum vento o faz desaparecer como aos frutos da lenda.
E se refiro apenas este período de dezasseis anos, iniciado com o fim da longa presidência de António Pimenta Machado, é porque ele corresponde ao fim de um ciclo incomparável face ao que veio a seguir mas também porque foi nesse período que o Vitória foi claramente ultrapassado pelo seu rival de sempre que construiu uma supremacia raramente contrariada e completamente nova face aos setenta anos anteriores.
Quando Pimenta Machado entrou no seu último mandato, já muito desgastado pela famigerada questão do saco azule pelo longo tempo de presidência (mais de vinte anos), aqueles que se lhe opunham em Guimarães, e que iam do poder político a um grupo de comunicaão social, começaram a construir a imagem daquele que havia de vir e que faria do Vitória um clube de primeirissímo plano nacional e quiçá internacional.
Foram dias, semanas, meses ao longo de dois anos de contínuo desgaste da imagem de Pimenta Machado e de promoção do ungido dos deuses com o qual chegaria a glória eterna e um sucesso sem fim.
Em 2002/2003 o Vitória ainda resistiu, certamente para desgosto dos promotores do tal futuro radioso, e conseguiu o seuquarto lugar mas em 2003/2004 já com a casa a arder ficaria por um modestíssimo décimo quarto lugar que só não foi pior porque Jorge Jesus fez jus ao nome e fez um pequeno milagre.
Desgastado pelos factores atrás referidos e provavelmente cansado de guerras, guerrinhas e guerrilhas Pimenta Machado demitiu-se e abriu caminho à chegada do tal redentor que sectores minoritários no clube tanto trabalharam para que acontecesse.
E ele chegou.
Com a promessa de um futuro incomparável com o passado (e foi mas infelizmente no pior sentido) e a certeza de que a irregularidade classificativa dos últimos anos de Pimenta Machado seria substituída por conquistas europeias sem quebras.
O primeiro ano até correu dentro do esperado e a equipa ficou em quinto lugar (atrás do Braga e dos três do costume) com o consequente apuramento europeu e o crscer das expectativas dos adeptos quanto ao tal futuro de conquistas intermináveis.
Na época seguinte o Vitória desceu à segunda liga depois de quarenta e oito anos consecutivos na primeira divisão!
Foi um choque brutal, uma decepção impossível de descrever, porque não só o descer de divisão era algo de impensável mas também porque a seguir a um ano bom com o quinto lugar e o apuramento europeu veio um ano horrível que atirava o clube para o inferno desportivo e financeiro do escalão inferior.
Foi o primeiro ano zero. Ou menos que zero.
Quando na época seguinte o presidente em quem tantas esperanças tinham sido depositadas resolveu ir embora deixando a equipa em décimo primeiro lugar na segunda divisão foi o querer dos adeptos, o grande trabalho de Manuel Cajuda e a coragem de pegar no clube naquelas ciscunstâncias de Emílio Macedo da Silva que conseguiram o milagre de uma recuperação que permitiu a subida de divisão e o regresso do Vitória ao seu escalão.
Foi um ano mau que acabou bem com grande alegria pela subida e que teve uma magnifica sequência em 2007/2008 com a equipa a fazer um terceiro lugar que só não foi segundo porque especialmente nos  últimos jogos as arbitragens não o permitiram.
Terceiro lugar e apuramento para o playoff da Champions, primeira equipa fora do Porto ou de Lisboa a chegar à prova milionária, que só não deu fase de grupos porque em Basileia um salteador de bandeirola na mão não o permitiu.
Parecíamos no bom caminho mas o oitavo lugar no final dessa época remeteu-nos para outro ano sem Europa ou seja outro ano zero em termos de percurso de conquistas e estabilidade em lugares cimeiros.
Em 2009/2010 um sexto lugar, mais um ano zero pela frente, vendo o Braga ser vice campeão nacional uma posição que o Vitória nunca atingiu e começando a adensar-se a convicção de que no plano financeiro as coisas não estavam a correr nada bem.
Nesse ano houve eleições com duas listas mas 69% dos vitorianos entenderam dever prosseguir no mesmo caminho.
Em 2010/2011 o regresso ao quinto lugar, uma vez mais atrás do Braga e dos três do costume, que permitira na época seguinte uma fugaz presença na Liga Europa onde o Atlético de Madrid facilmente nos eliminou no play off.
No campeonato um sexto lugar e mais um ano zero pela frente que levou Emílio Macedo da Silva , fortemente contestado pelos associados e com uma situação financeira em completa derrapagem, a demitir-se e convocar eleições das quais sairia vencedora a lista encabeçada por Júlio Mendes.
2012/2013 com um plantel fortemente condicionado pelas enormes dificuldades financeiras traria um desanimador nono lugar no campeonato  mas em simultâneo a conquista da Taça de Portugal frente a um fortíssimo Benfica fruto do grande trabalho de Rui Vitória na equipa A e de Luiz Felipe na então criada equipa B preparando vários jovens para subirem ao longo da época à equipa principal.
A Taça valeu Europa, valeu esperança da tal ascensão à estabilidade europeia, mas valeu também o início de uma política de venda de jogadores que não foi financeiramente nada compensadora e desportivamente foi francamente má.
Bastará considerar que mal a Taça foi ganha logo se venderam os dois pontas de lança (Soudani e Baldé) e dois dos jovens (Ricardo Pereira e Tiago Rodrigues) que mais expectativas criavam nos adeptos quanto à construção de uma excelente equipa com base na formação e na equipa B.
Na Europa não houve sucesso e no campeonato de 2013/2014 um desalentador décimo (!!!) lugar substituia, uma vez mais, a esperança por um ano zero em que seria necessário recomeçar tudo quase do início.
Em 2014/2015 lá veio um quinto lugar, sempre atrás dos agora do costume, com o reacender da esperança dos vitorianos (provavelmente os adeptos com mais fé em todo o mundo) em que desta vez é que seria e o Vitória ia mesmo entrar na trilha do sucesso sem quebras nem hiatos.
Mas como os nosso anos zero correspondem ao suplício de Tântalo, convém não esquecer, claro que no ano a seguir depois de uma participação europeia sem história veio outro décimo lugar e a condenação a outro ano zero.
Sempre acompanhado, é claro, pela venda de jogadores sem grande proveito financeiro e nulo proveito desportivo.
Em 2016/2017 um quase surpreendente quarto lugar (com o habitual reacender de esperanças) logo seguido de uma nona posição na época 2017/2018 que nisto de anos zero o Vitória deve ser campeão nacional incontestável.
Em 2018 há eleições onde por curta margem os associados decidem insistir num caminho que, tal como em 2010, já se percebia estar esgotado.
Finalmente, que o texto já vai longo, em 2018/2019 um quinto lugar acompanhado pela surpreendente demissão da direcção do clube e da administração da SAD já perto do final da temporada com algumas consequências para o futuro próximo.
O apuramento europeu (e o que já se sabe quanto a esperanças) mas também o planeamento da actual época e o treinador Ivo Vieira já contratado que foram heranças “forçadas” da actual SAD.
E se a época passada dera Europa é evidente que por força da tradição esta tinha de dar ano zero.
E deu.
Uma participação europeia em que as exibições foram sempre melhores que os resultados, mas em que ainda assim o Vitória fez uma digna fase de grupos, e um campeonato em que o clube tinha tudo para obter uma excelente classificação mas em que tudo o indica nem o apuramento europeu conseguirá.
Ou seja...ano zero pela frente.
Uma vez mais será preciso recomeçar.
Recomeçar a construir uma equipa (Tapsoba  já foi, Edwards dificilmente deixará de ir, os emprestados não convenceram e há saídas inevitáveis para lá de Miguel Silva)porque é necessário reforçá-la muito e bem, recomeçar com um treinador diferente porque Ivo Vieira vai embora, recomeçar a trilhar um caminho que só pode ter o sucesso como objectivo porque de anos zero estamos todos completamente fartos e não há paciência para mais desilusões.
Pela primeira vez, depois das inevitáveis heranças de 2018/2019, a SAD liderada por Miguel Pinto Lisboa terá controlo e capacidade de decisão absolutas sobre o plantel que vai enfrentar a época de 2020/2021 bem como sobre o projecto desportivo que sustentará as épocas seguintes.
Terão perante eles a enorme responsabilidade de acabarem com este ciclo maldito de dezasseis anos de alternância entre anos zero e êxitos esporádicos lançando o Vitória no caminho dum sucesso que não chegará todo ao mesmo tempo mas tem de chegar e, mais do que isso, tem de chegar para ficar.
Porque, repito, creio que todos os vitorianos estão fartos do que tem sido o nosso triste fado nestes anos aqui retratados.

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