sexta-feira, setembro 29, 2023

Feudalismo Vitoriano

O meu artigo desta semana no zerozero.pt
No século XIII a sociedade portuguesa estava claramente estratificada em três grupos sociais - Clero, Nobreza e Povo- acima das quais se encontrava a figura do Rei.
Eram os tempos do auge do feudalismo.
Que me suscita algumas comparações, dadas as analogias fáceis de fazer, com aquilo que tem sido a História do Vitória desde 1922 até aos dias de hoje.
Que por razões que adiante explicarei considero estar dividida em dois grande periodos com o primeiro a estender-se desde a fundação até 1974 e o segundo de 1974 até aos tempos presentes.
Entendendo-se desde já o Rei como D.Afonso Henriques, o Povo como os adeptos, a Nobreza como a classe social de onde saem os dirigentes e o Clero como os influenciadores que não dirigindo nem sendo eleitos tem um poder de influência significativo.
No primeiro desses períodos não se pode falar de um Clero influente mas apenas de dois grupos.
A nobreza constituida por élites vimaranenses ligadas à indústria e ao comércio que dirigiam o clube e se escolhiam entre eles para o dirigirem, sabendo que financeiramente isso lhes ia sair do bolso em boa parte, e o povo constiuido pelos adeptos que davam o corpo e o ser ao Vitória e que se tornaram desde muito cedo na sua maior mais valia.
O Rei esse estava lá e é desde sempre a única figura consensual do clube.
Com o 25 de Abril o panorama mudou nalguns aspectos.
A Nobreza foi paulatinamente perdendo poder, muito por força também da situação económica do país que atingiu severamente a indústria e o comércio, ao ponto de poucos anos depois da revolução ter perdido a soberania que detinha no clube num contexto de que adiante falarei.
O Povo, esse, lá continuou a como sempre dar o sustento ao clube.
Enchendo as bancadas, do Bem-Lhe-Vai ao D.Afonso Henriques passando pela Amorosa, seguindo as equipas pelo país fora, saindo à rua para manifestar a sua revolta com as injustiças que lhe eram feitas, dando continuos exemplos de dedicação e amor ao emblema.
E surgiu, aí sim, uma nova realidade.
O Clero.
Os tais que não sendo eleitos nem dirigindo possuiam e possuem um poder significativo como influenciadores de direcções e de adeptos nestes anos mais recentes.
Entenda-se como Clero a Câmara Municipal, a comunicação social e as redes sociais nas suas diversas formas de expressão que vão do escrito ao falado e ao transmitido em imagens e alguns personagens que se acham detentores de um elevado estatuto no seio do clube.
Sendo certo que esta realidade da influência clerical foi algo que se começou a esboçar logo após a revolução mas teve largos anos de pouco significado muito por força de um fenómeno surgido em 1979 e que se consubstanciou na eleição de António Pimenta Machado como presidente do Vitória.
Com a ironia de tendo vindo da Nobreza (é de uma das famílias ligadas ao comércio, à industria e também ao Vitória mais tradicionais de Guimarães) ter posto fim ao poder dessa mesma Nobreza conforme ele se expressara durante décadas.
E tornando-se no presidente mais amado pelo Povo, que se identificava com a sua forma de liderar, e mais odiado por parte significativa do Clero e de alguma da Nobreza porque não só não lhes tinha medo, como não se deixava comandar por eles e ainda prescindia do seu apoio fosse para o que fosse com um ou outro exagero à mistura.
Num apontamento mais pessoal recordo-me de ele várias vezes em conversas me dizer que se estivesse à espera do comércio e da indústria de Guimarães para gerir financeiramente o Vitória o clube já teria fechado portas!
Com o fim do ciclo de Pimenta Machado, algo em que boa parte do Clero e da Nobreza se empenharam sem medirem as consequências, o feudalismo vitoriano voltou à sua estratificação clássica com a nuance de o poder do Clero se tornar cada vez mais forte, de a Nobreza ter dificuldade em reassumir o seu papel do antigamente por razões que se prendem com a força impositiva do Clero e com o Povo como sempre unido em torno das equipas mas cada vez mais desunido em termos de tudo o resto.
O que levou a uma elevada rotação de presidentes (cinco em dezoito anos) com direcções por norma frágeis e consequente pouca estabilidade directiva o que levou ao reforço do poder dos não eleitos que dadas as diversas formas de pressão e condicionamento ao seu alcance assumiram um cada vez maior protagonismo na vida do clube.
Sendo certo que este enfraquecimento da Nobreza também se manifestou através de um crescente desinteresse pela vida do clube expresso na forma como na constituição da SAD a indústria e o comércio vimaranense se alhearam da aquisição de acções o que levou a que o clube tivesse que se virar para outras soluções.
E chegamos aos dias de hoje.
Qual é o ponto da situação?
O Rei continua lá. Inatacável, indiscutível, consensual.
O Povo também não arreda pé. Sofre, festeja o pouco que há para festejar e ultrapassa de dentes cerrados as muitas desilusões e desgostos que fazem parte do ADN vitoriano dos ultimos largos anos. Sempre unido em torno do símbolo e das equipas mas cada vez mais dividido em tudo o resto. Mais conformado e menos exigente do que era seu apanágio.
O Clero está forte. No que faz, no que não faz, no que promete fazer e depois se esquece, nas cumplicidades e solidariedades com moedas de troca, nas campanhas pró e nos assanhamentos contra a troco de reconhecimentos generosos e de favores que não são de rejeitar.
A Nobreza hoje assume uma nova forma. Já não são os generosos industriais e comerciantes do passado, que mandavam mas pagavam do seu bolso para isso, que foram substituídos por umas élites (há quem os denomine dessa forma) que se tem a si próprias em elevado conceito, que se acham mais vitorianos que qualquer vitoriano, que creem pensar bem e falarem melhor e que olham o Povo com a sobranceria típica de quem se lhe acha superior.
É o actual estado da Nação vitoriana.
Um clube centenário, orgulhoso da sua História, detentor de uma massa adepta incomparável mas que está parado no tempo assistindo ao desenvolvimento e fortalecimento de outros emblemas vizinhos e com uma clara dificuldade em trilhar de forma consistente e estável o caminho do sucesso.
Uma coisa sei.
Ao contrário do feudalismo medieval em que o Povo apenas servia para trabalhar e pagar impostos no feudalismo vitoriano o Povo tem o poder supremo de também pagando poder decidir o futuro que quer para o seu clube.
E o que se deseja, porque essencial e inadiável, é que quando for chamado a faze-lo o faça muito bem.
Porque, infelizmente, nem sempre o tem feito.

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