Quando alguém desaparece fisicamente do mundo dos vivos a tendência é sempre escrever umas palavras em que se manifesta a tristeza pelo infausto acontecimento acompanhadas de louvores póstumos mais ou menos adequados ao falecido.
Falo por experiência própria, porque já o fiz por diversas vezes, mas
neste texto vou procurar fazer algo diferente deixando algumas memórias
pessoais do Daniel jogador e do Daniel cidadão.
Por estes dias o Vitória perdeu uma daquelas “eliminatórias” em que
não há segunda volta possível com o falecimento de Daniel Barreto que era uma
das grandes referências do clube, há mais de cinquenta anos, e que perdurará na
memória de todos quantos o viram jogar e tiveram o prazer de o conhecer.
Embora existam versões diferentes, em termos de prazos temporais, a
minha convicção é que Daniel Barreto jogou vinte temporadas consecutivas no
Vitória o que o torna não só em recordista absoluto em número de épocas (e esse
recorde parece-me completamente imbatível) como também no número de jogos
disputados na primeira divisão o que sendo difícil de ultrapassar não é
impossível dado que hoje o número de jogos é maior do que nos seus tempos de
jogador.
Quando Daniel chegou ao Vitória, e aqui começou a construir uma bonita
carreira, eu não era sequer nascido pelo que a minha memória dos seus tempos de
jogador abarca apenas os últimos quatro ou cinco anos em que vestiu a nossa
camisola antes de ir terminar a sua carreira em clubes de menor expressão como
era e continua a ser tradicional no nosso futebol.
Mas essa memória dos anos finais de carreira está ainda hoje bem viva.
Daniel era um defesa lateral esquerdo, embora às vezes também jogasse
à direita ou em posições mais adiantadas, cheio de raça, que nunca dava uma
bola por perdida e que fazia gala de levar à prática aquele velho princípio de
que ou passa a bola ou passa o homem porque os dois é que nunca!
Era duro na marcação, implacável na abordagem da bola mas de uma
enorme lealdade e absolutamente incapaz de lesionar propositadamente um
adversário embora por norma entrasse “com tudo” como se diz na linguagem
futebolística.
Recordo especialmente, dado o mediatismo desses jogos, os seus duelos
com um dos melhores extremos direitos da História do nosso futebol, José
Augusto do Benfica, em que Daniel compensava o virtuosismo e velocidade do
adversário com uma notável entrega ao jogo e o recurso às tais marcações
implacáveis que o tornavam temido por todos os adversários.
Recordarei sempre algumas conversas que com ele mantive e em que
referia esses duelos apimentando as histórias que contava com saborosos
pormenores das trocas de palavras entre ambos especialmente no tempo em que os
jogos se disputavam no saudoso pelado da Amorosa que proporcionava (face às
menores dimensões do recinto em comparação com o relvado do D.Afonso Henriques)
muito maior contacto entre os jogadores.
A melhor delas refere um jogo em que andavam particularmente “picados”
e em que Daniel aproveitou uma jogada perto da entrada para o balneário do
Vitória para com oportuna carga de ombro atirar José Augusto pelas escadas
abaixo.
Claro que esta parte da escada e do balneário só será integralmente
percebida por quem tiver conhecido o campo da Amorosa.
Essa memória que tenho de ver Daniel Barreto jogar é indissociável do
facto de ter jogado numa das melhores equipas que me lembro de ver no Vitória,
provavelmente a melhor mesmo, que foi aquela que em 1968/1969 ficou em terceiro
lugar a três escassos pontos de ser campeã nacional um título que seria mais do
que merecido pela grande temporada feita e pelas grandes exibições
protagonizadas.
Dois ou três empates caseiros no início da temporada mais um “roubo de
igreja” a três jornadas do fim, numa derrota no Restelo num jogo em que para o
Belenenses nada estava em jogo face à sua posição tranquila na tabela,
impediram o Vitória de se sagrar campeão permitindo que uma forte equipa do
Benfica revalidasse o título nacional.
Depois de terminar o seu percurso no Vitória, como jogador, ainda
jogou mais dois ou três anos noutros clubes regressando posteriormente ao “seu”
clube como treinador adjunto de Mário Wilson nele se mantendo durante vários
anos em que por uma ou outra vez teve de assumir a responsabilidade de
treinador principal naquele fenómeno tão típico das “chicotadas psicológicas”
em que o adjunto assegura a equipa enquanto não chega o novo treinador.
Comerciante de pronto a vestir no centro histórico Daniel Barreto fez
de Guimarães a sua terra (era natural de Ponte da Barca) mantendo sempre uma
enorme ligação ao Vitória através das “Velhas Guardas” de que era grande
dinamizador e treinador em tantos jogos e em que tanto orgulho tinha.
Foi nesse tempo que o conheci e que tive mais oportunidade de com ele
conviver porque as funções que então desempenhava de secretário-geral na
direcção me permitiram estar presente em vários momentos de encontro das
referidas “Velhas Guardas”.
E quantas saborosas histórias sobre futebol lhe ouvi.
Mas também prezava a sua opinião, quase sempre antes ou no intervalo
dos jogos a que assistia na tribuna VIP, sobre os actuais jogadores do clube, o
seu potencial, os seus pontos fortes e fracos.
Recordo que em 2012, nos meses em que integrei a primeira direcção de
Júlio Mendes com a responsabilidade do futebol, por mais que uma vez procurei
saber a sua opinião sobre este ou aquele jogador do clube ou de adversários que
nos defrontavam porque confiava muito na sua experiência e na sabedoria sobre
toda a matéria futebolística.
Foi um bom jogador, um excelente cidadão e um amigo que recordarei
sempre com o respeito e o carinho devido aqueles que deixaram uma marca tão
positiva em todos quantos com eles se relacionaram.
O Vitória perde um grande vitoriano, uma grande referência do clube
mas ganha uma lenda que se vai juntar a outros cujas obras valorosas fizeram e
fazem do nosso Vitória uma autêntica lenda do nosso desporto.
Obrigado Daniel Barreto.
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