sábado, janeiro 29, 2022

Egos

O meu artigo desta semana no zerozero.pt

No início deste mês, e no âmbito do programa de comemoração do Centenário do Vitória Sport Clube, a comissão organizadora do mesmo levou a cabo a realização de uma tertúlia com jogadores do clube dos anos sessenta e princípio dos anos setenta do século passado.

Por um lado fê-lo como uma forma de realçar a importância que essas décadas, e esses jogadores, tiveram na História do clube mas também pelo que de curioso encerra ouvir falar do que era o futebol cinquenta anos atrás.
Foram convidados dessa tertúlia António Peres (para muitos, nos quais me incluo, o mais carismático “capitão” de equipa da História do Vitória) , Tito (ainda hoje o jogador que mais golos marcou com a camisola vitoriana), Manuel Pinto (internacional A ao serviço do Vitória nos anos 60) e Rodrigues (um dos melhores guarda redes vitorianos de sempre) e ouvi-los falar durante quase três horas foi uma verdadeira lição de vitorianismo mas também do que era o futebol no tempo deles.
Os salários que recebiam, a famigerada “lei da opção” que tantas carreiras prejudicou, as longuíssimas viagens para disputarem jogos do campeonato num tempo em que não havia auto estradas, as arbitragens , os balneários com parcas condições, os equipamentos que nada tinham a ver com os de hoje, as botas com travessas cujos pregos por vezes feriam os pés, a medicina desportiva rudimentar, o peso das bolas, os pelados onde as quedas significavam esfoladelas de diferentes graus de gravidade, o ostracismo a que a imprensa votava os clubes de fora de Lisboa, a raridade de à selecção ir alguém que não fosse do Benfica, do Sportng e mais remotamente de Porto  e Belenenses.
E depois a memória dos grandes jogos, da intensa rivalidade com alguns clubes, da forma como o Vitória perdeu finais de taça (Peres e Pinto jogaram a de 1963  enquanto Rodrigues e Tito participaram na de 1976 furtada ao Vitória por Garrido com o produto do furto a ser entregue ao Boavista) e do confronto com os grandes jogadores da altura como Eusébio, Torres, Matateu, Coluna e vários outros que jogavam nos clubes tradicionalmente campeões nacionais.
Da conversa, e das muitas perguntas feitas pelo público, resultaram inevitáveis comparações com os tempos actuais em muitos dos aspectos que envolvem o futebol tendo sido uma opinião largamente abrangente que os futebolistas desse tempo, muito por força também das mentalidades, obrigações e falta de condições então existentes tinham uma entrega, uma generosidade e uma capacidade de sacrifício que são impensáveis nos tempos de hoje em que o profissionalismo traz imperativos que eram há cinquenta ou sessenta anos completamente inimagináveis.
E uma das razões para isso era o respeito que os jogadores tinham pelos seus clubes, mesmo quando estes os tratavam de forma injusta e imerecida (nomeadamente não os deixando sair para ganharam mais precisamente com base na tal lei da opção) , e pelos adeptos que sem alguns “preciosismos” dos tempos actuais eram infatigáveis no apoio às equipas e aos jogadores a quem reconheciam o tal brio insuperável.
Para lá do facto de no Vitória e em Guimarães haver uma capacidade muito especial para receber os que vinham de fora e fazerem-nos rapidamente sentirem-se em casa como se fossem naturais da Terra e nunca dela tivessem saído.
E todos os quatro são excelentes exemplos disso.
António Peres é natural de Gaia mas veio do Benfica para o Vitória; Manuel Pinto é natural do Montijo e veio igualmente do Benfica; Tito é natural de Lisboa e veio do União de Tomar e Rodrigues é natural de Évora e veio do Lusitano daquela cidade, tendo todos eles ficado a residir em Guimarães depois de terem terminados as respectivas carreiras.
E ao ouvir estas quatro lendas vitorianas, quatro homens que deram tudo na defesa da camisola vitoriana, quatro profissionais que puseram sempre o interesse do clube à frente dos seus interesses pessoais tornou-se inevitável uma reflexão , em abstracto bem entendido, sobre algumas componentes do que é o profissionalismo de alguns jogadores (não todos) nos tempos que correm em clubes do primeiro plano do futebol português , europeu e mundial.
Bem pagos, com excelentes condições de treino, com todas as comodidades e luxos que o dinheiro proporciona, idolatrados a um nível incomparável face à realidade comunicacional dos tempos correntes, nada lhes faltando nos clubes, jogando em estádios com relvados magnifícos e balneários que são autênticos hóteis de 5 estrelas, autênticas “pop stars” , qual é o “troco” que dão aos seus clubes e aos seus adeptos?
Uma preocupação exacerbada com as suas imagens, os seus penteados, as tatuagens, os piercings, as jóias e relógios, os carros de luxo, em suma uma concentração tal na imagem, fruto de egos exacerbados pela vaidade e pelo consumismo, que admira como ainda conseguem ter tempo para jogarem futebol e capacidade de se concentrarem no que é realmente importante nas suas profissões.
Poderá haver aqui algum exagero (há de certeza) porque muitos desses jogadores obcecados pela sua imagem também jogam, e muito bem nalguns casos, mas não posso deixar de dizer que todos eles teriam muito a aprender com homens como António Peres, Manuel Pinto, Tito e Rodrigues.
Esses jogaram a alto nível , com um profissionalismo e uma dedicação ao clube exemplares, num tempo em que o futebol tinha bem mais razões para se sentir orgulhoso de si próprio do que aquelas que tem hoje.
Porque com os seus defeitos,alguns já atrás apontados, era mais puro na sua essência e o centro de tudo estava dentro dos relvados e pelados onde se jogava e não naquilo que hoje o cerca e quase asfixia.
Outros tempos e outro futebol de que não é possível disfarçar a saudade.

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