Raramente partilho no meu blogue textos que não sejam escritos por mim.
Mas por vezes abro excepções. E este notável artigo do
Pedro Chagas Freitas é uma dessas excepções. Porque traduz na perfeição a nossa realidade de vitorianos e vimaranenses a quem não querem deixar voar mas como ele diz numa frase notável ... "Quando se nasce para voar, ninguém consegue forçar-nos a andar."
Muito bom mesmo!
Depois Falamos
O EVANGELHO SEGUNDO OS APITADORES
E aconteceu que havia uma cidade onde, todas as semanas, os pássaros mais bravos se juntavam num campo aberto; queriam desafiar o céu. As pessoas vinham de longe para ver esses voos, aqueles em que os homens de Guimarães erguiam as asas como se a altura fosse deles, como se o ar os recebesse em glória.
Só que, naquela cidade, o céu tinha donos. Vestiam de preto, carregavam apitos e pareciam sempre mais interessados em manter os pássaros perto do chão. Eram eles quem decidia qual voo era permitido e qual caía sobre a terra antes de ter tocado o sol.
Uma coisa é cair sozinho; outra é ser empurrado por quem nunca tentou. A força de uns parece sempre ameaçar a autoridade de outros. Alguns nascem para sentir a terra; outros, como o juiz, para segurá-la com punhos fechados, mesmo que tenha de sujar as mãos.
Naquela tarde, o vento estava perfeito e o povo tinha vindo em peso. Guimarães sentia no peito que era o dia de romper a corrente, de levar o voo até onde nunca tinha chegado antes. O céu parecia chamá-los. A cada passo que davam, os gritos da cidade ecoavam: hoje, Guimarães ia tocar o azul. Ao lado do campo, como sombras que se colam ao chão, estavam os homens de preto, imóveis, atentos. O apito pendurado nos lábios, pronto para cortar qualquer sonho. Sentia-se o peso daquela espera, o frio daquele olhar que acompanhava cada movimento dos pássaros com uma precisão cruel. Talvez não houvesse justiça; só o prazer de controlar. Eles eram mestres nesse deleite.
Quando alguém diz que é justo, já decidiu quem vai perder.
E assim começou. As asas abriram-se, as aves de Guimarães subiram numa dança furiosa; carregavam cada um dos sonhos do povo. Lá em baixo, no campo, os olhos dos homens de preto percorriam cada traço do voo, os olhares duros. Eles tinham ordens, ordens invisíveis: aquelas asas nunca deviam alcançar o alto.
Cada asa que sobe é uma afronta para quem se esqueceu de como voar.
Veio o primeiro apito. Como uma faca que corta o ar, um som que cortava o voo como uma sentença. A multidão estremeceu. Aquele não era o voo deles, dizia o apito; aquele não era o voo permitido. Nada fere mais a autoridade do que o desejo de a desafiar. O juiz sabia que não é preciso ganhar; é preciso saber o que cortar. Como se cortar o voo alheio o fizesse voar.
Mas o povo não desistiu. Guimarães não desistia. O voo continuou, um pouco mais baixo, mas continuou. O coração da cidade bateu mais forte. E, de novo, veio o apito, agora mais agudo: mais certeiro. O homem de preto apontou para o chão. O voo tinha falhado, dizia ele; o ângulo estava errado, a rota desviada. Ali não se voava assim. Ali, os pássaros deveriam saber o seu lugar. A multidão gritou, mas o homem não olhou para eles. É típico do homem fraco ver nas alturas um erro a corrigir. O apito era o seu grito; o grito da cidade, para ele, era só ruído.
Nada apavora mais um tirano do que o eco da liberdade nos olhos de quem ele não pode calar.
As aves, no entanto, continuaram. Era Guimarães que estava ali, naquelas asas teimosas, e por isso não podiam parar. Tinham de subir, como se aquela fosse a última oportunidade de respirar o ar de um voo completo, livre. Quando subiram mais um pouco, o homem de preto gritou de novo: Não! A voz ressoou pelo campo, o apito a cortar o silêncio, um novo erro, um novo gesto de derrota. O que ele temia não era o erro, mas que alguém ousasse corrigi-lo. Mesmo assim, ali estavam eles, prontos para desafiar o chão.
O voo torna-se ameaça quando quem observa tem os pés cravados no medo. Dizem que o justo ascende; poucos notam quantos o tentam manter no chão.
O voo parou. As aves, cansadas, flutuaram mais baixo, a cidade inteira a segurá-las com os olhos, como se o peso do desejo fosse suficiente para mantê-las no ar. Mas o homem de preto não descansava. A cada movimento, a cada pequeno desvio, um novo apito, um novo corte, um novo aviso de que ali, naquele campo, não se voava como queriam. Não era Guimarães quem decidia, não era o céu quem abria o caminho. Era ele, o juiz do voo, aquele que moldava o ar a seu gosto.
Quem tem medo de perder controla o que não entende; quem não sabe o que é a liberdade quer prendê-la. O juiz sabia: aqueles pássaros tinham algo que ele nunca teria.
A beleza de quem se ergue vem da verdade de quem não se rende.
E o povo sabia. Sentia a injustiça, mas também sabia que ali, naquele campo, a justiça não tinha lugar. Sabiam que aquele era o ritual dos homens de preto: erguer e derrubar, controlar e esmagar. E o voo continuou, tremido, sem força, como se cada batida de asa fosse a última. Mas as aves não desistiram. Cada apito, cada corte, era uma ferida, mas elas voaram como quem se despede, como quem faz do último voo uma honra, uma prova de que nem todos os apitos conseguem calar uma cidade inteira. Se calar o grito de Guimarães fosse fácil, não precisariam de tanto apito.
Vencer é uma luta solitária; a justiça, para aquele juiz, é uma palavra perdida. Quem ouve os sonhos do povo não precisa de apitos. A vontade das pessoas limita-se ao mundo que imaginam controlar.
E, quando o último apito soou e as asas se fecharam, o homem de preto baixou a cabeça e saiu. O povo ficou em silêncio, um silêncio profundo, pesado. Sabia que, no próximo sábado, estaria ali de novo, com os mesmos sonhos, as mesmas asas feridas, pronto para desafiar o voo que nunca lhes pertenceu.
Quando se nasce para voar, ninguém consegue forçar-nos a andar.
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no jornal DESPORTIVO DE GUIMARÃES desta semana