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terça-feira, novembro 20, 2018

Daniel Barreto

O meu artigo desta semana no jornal digital Duas Caras.

Quando alguém desaparece fisicamente do mundo dos vivos a tendência é sempre escrever umas palavras em que se manifesta a tristeza pelo infausto acontecimento acompanhadas de louvores póstumos mais ou menos adequados ao falecido.
Falo por experiência própria, porque já o fiz por diversas vezes, mas neste texto vou procurar fazer algo diferente deixando algumas memórias pessoais do Daniel jogador e do Daniel cidadão.
Por estes dias o Vitória perdeu uma daquelas “eliminatórias” em que não há segunda volta possível com o falecimento de Daniel Barreto que era uma das grandes referências do clube, há mais de cinquenta anos, e que perdurará na memória de todos quantos o viram jogar e tiveram o prazer de o conhecer.
Embora existam versões diferentes, em termos de prazos temporais, a minha convicção é que Daniel Barreto jogou vinte temporadas consecutivas no Vitória o que o torna não só em recordista absoluto em número de épocas (e esse recorde parece-me completamente imbatível) como também no número de jogos disputados na primeira divisão o que sendo difícil de ultrapassar não é impossível dado que hoje o número de jogos é maior do que nos seus tempos de jogador.
Quando Daniel chegou ao Vitória, e aqui começou a construir uma bonita carreira, eu não era sequer nascido pelo que a minha memória dos seus tempos de jogador abarca apenas os últimos quatro ou cinco anos em que vestiu a nossa camisola antes de ir terminar a sua carreira em clubes de menor expressão como era e continua a ser tradicional no nosso futebol.
Mas essa memória dos anos finais de carreira está ainda hoje bem viva.
Daniel era um defesa lateral esquerdo, embora às vezes também jogasse à direita ou em posições mais adiantadas, cheio de raça, que nunca dava uma bola por perdida e que fazia gala de levar à prática aquele velho princípio de que ou passa a bola ou passa o homem porque os dois é que nunca!
Era duro na marcação, implacável na abordagem da bola mas de uma enorme lealdade e absolutamente incapaz de lesionar propositadamente um adversário embora por norma entrasse “com tudo” como se diz na linguagem futebolística.
Recordo especialmente, dado o mediatismo desses jogos, os seus duelos com um dos melhores extremos direitos da História do nosso futebol, José Augusto do Benfica, em que Daniel compensava o virtuosismo e velocidade do adversário com uma notável entrega ao jogo e o recurso às tais marcações implacáveis que o tornavam temido por todos os adversários.
Recordarei sempre algumas conversas que com ele mantive e em que referia esses duelos apimentando as histórias que contava com saborosos pormenores das trocas de palavras entre ambos especialmente no tempo em que os jogos se disputavam no saudoso pelado da Amorosa que proporcionava (face às menores dimensões do recinto em comparação com o relvado do D.Afonso Henriques) muito maior contacto entre os jogadores.
A melhor delas refere um jogo em que andavam particularmente “picados” e em que Daniel aproveitou uma jogada perto da entrada para o balneário do Vitória para com oportuna carga de ombro atirar José Augusto pelas escadas abaixo.
Claro que esta parte da escada e do balneário só será integralmente percebida por quem tiver conhecido o campo da Amorosa.
Essa memória que tenho de ver Daniel Barreto jogar é indissociável do facto de ter jogado numa das melhores equipas que me lembro de ver no Vitória, provavelmente a melhor mesmo, que foi aquela que em 1968/1969 ficou em terceiro lugar a três escassos pontos de ser campeã nacional um título que seria mais do que merecido pela grande temporada feita e pelas grandes exibições protagonizadas.
Dois ou três empates caseiros no início da temporada mais um “roubo de igreja” a três jornadas do fim, numa derrota no Restelo num jogo em que para o Belenenses nada estava em jogo face à sua posição tranquila na tabela, impediram o Vitória de se sagrar campeão permitindo que uma forte equipa do Benfica revalidasse o título nacional.
Depois de terminar o seu percurso no Vitória, como jogador, ainda jogou mais dois ou três anos noutros clubes regressando posteriormente ao “seu” clube como treinador adjunto de Mário Wilson nele se mantendo durante vários anos em que por uma ou outra vez teve de assumir a responsabilidade de treinador principal naquele fenómeno tão típico das “chicotadas psicológicas” em que o adjunto assegura a equipa enquanto não chega o novo treinador.
Comerciante de pronto a vestir no centro histórico Daniel Barreto fez de Guimarães a sua terra (era natural de Ponte da Barca) mantendo sempre uma enorme ligação ao Vitória através das “Velhas Guardas” de que era grande dinamizador e treinador em tantos jogos e em que tanto orgulho tinha.
Foi nesse tempo que o conheci e que tive mais oportunidade de com ele conviver porque as funções que então desempenhava de secretário-geral na direcção me permitiram estar presente em vários momentos de encontro das referidas “Velhas Guardas”.
E quantas saborosas histórias sobre futebol lhe ouvi.
Mas também prezava a sua opinião, quase sempre antes ou no intervalo dos jogos a que assistia na tribuna VIP, sobre os actuais jogadores do clube, o seu potencial, os seus pontos fortes e fracos.
Recordo que em 2012, nos meses em que integrei a primeira direcção de Júlio Mendes com a responsabilidade do futebol, por mais que uma vez procurei saber a sua opinião sobre este ou aquele jogador do clube ou de adversários que nos defrontavam porque confiava muito na sua experiência e na sabedoria sobre toda a matéria futebolística.
Foi um bom jogador, um excelente cidadão e um amigo que recordarei sempre com o respeito e o carinho devido aqueles que deixaram uma marca tão positiva em todos quantos com eles se relacionaram.
O Vitória perde um grande vitoriano, uma grande referência do clube mas ganha uma lenda que se vai juntar a outros cujas obras valorosas fizeram e fazem do nosso Vitória uma autêntica lenda do nosso desporto.
Obrigado Daniel Barreto.

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