Pedro Chagas Freitas é, já se sabe, um dos melhores escritores portugueses dos tempos que correm.
E por isso este texto sobre Nélson da Luz não surpreende pela qualidade, que é muita e extraordinária, mas pela perfeição com que interpreta uma situação específica e um modo de estar e de ser dos vitorianos desde sempre.
É também um tributo ao talento imenso de um jogador incompreendido por alguns e um apelo à sensatez que deve ser seguido por todos.
Um texto magnífico.
Para ler e essenciamlente para ser percebido.
É que ler e perceber nem sempre andam de mãos dadas.
Depois Falamos.GOSTAMOS DOS ANIMAIS SELVAGENS, MAS SÓ QUANDO ELES NÃO PODEM FERIR-NOS
Em Braga, há uns meses, começou por ser Maradona quando trouxe a bola sozinho desde o meio-campo, e acabou a ser uma espécie de Cristo — pendurado na cruz por ter tentado mais um drible, mais um passo de dança, por ter desperdiçado uma oportunidade que só ele tinha sido capaz de criar. Foi perseguido nas redes, insultado, atacado em todas as suas esferas, sem misericórdia. Tinha cometido o crime capital: ser falível. Mais ainda: génio falível.
Se há algo que os génios fazem mais do que os outros é falhar.
Inventar, criar, nasce disso, na verdade. Do erro. Do que corre mal. Quem faz o que nunca foi feito, quem procura a solução nunca procurada, está sempre a circundar o abismo: nunca se sabe se resulta, nunca se sabe se vai acontecer o desejado. Quem só faz o banal, o vulgar, o que outros já fizeram, está numa zona de segurança. Numa espécie de cobardia tranquila, passe a redundância.
Um criativo é um especialista no que não existe.
Um criativo é um especialista no que não acontece, no que nunca aconteceu. É essa a sua grande falha, como é essa a sua grande virtude. Aquilo que o separa dos restantes. Aquilo que os restantes, por serem os restantes, não conseguem compreender, aquilo que os restantes, por serem os restantes, preferem atacar, vilipendiar. Não o fazem por mal: apenas por incompreensão, apenas por ser esse (o ataque) o modo mais fácil que nós, pobres humanos, encontramos para fazer face ao que não sabemos explicar.
Viver não é estar vivo; viver é estar dentro do que não sabemos explicar.
Somos todos viciados no explicável, no tangível, no que está à frente dos olhos, no que consegue caber dentro do mapa do nosso entendimento. É mais fácil. Faz-nos bem. Se eu fizer algo igual ao que outro fez, e se o fizer igualmente bem, tudo correrá como correu ao outro. E está tudo bem: tudo igual. Tudo cada vez mais na mesma. É isso o que fazer o que todos fazem traz de novo: nada. Nada de extraordinariamente negativo irá acontecer, mas também nada de extraordinariamente positivo irá acontecer.
O extraordinário é extraordinariamente arriscado.
Na criatividade não há estatística. A percentagem de soluções ainda não inventadas que foram testadas antes é zero por cento, mais coisa menos coisa. Quando Nelson da Luz arrancou do meio-campo, naquela noite em Braga, e começou a avançar com a bola colada ao pé esquerdo, estava à procura da solução. Como todos os adeptos estavam à procura da solução. Naqueles instantes, segundo a segundo, éramos todos criativos, éramos todos génios. É isso o que um génio faz: transforma todos os que assistem ao seu trabalho de génio em génios. Quando vejo um quadro de Picasso, sou Picasso; quando ouço a voz de Freddie Mercury, sou Freddy Mercury. Nem que por segundos, nem que por instantes. O génio transforma a banalidade em raridade, a pedra em flor, em joia. E quando ele falha a magia, nós falhamos com ele, nós caímos com ele.
A crueldade com os génios é essa: voamos com eles quando eles nos fazem voar, mas abandonamo-los quando eles nos fazem cair.
Temos todos a mania de querer adestrar o talento. Temos pouca paciência para os destemperados, para os diferentes. Apregoamos a toda a hora a igualdade, dizemos que queremos espectáculo, diversão, samba, mas quando o samba nos cansa os pés queremos é a paz da valsa, da música clássica que não nos magoa. O conforto não traz euforia, mas pelo menos não magoa ninguém.
Gostamos dos animais selvagens, mas só quando eles não podem ferir-nos.
Quando estão enjaulados, são adoráveis. Uns fofos, perfeitos para as melhores fotografias e selfies que alguma vez tivemos a oportunidade de tirar. Mas, quando podem chegar até nós, tememo-los, viram bichos, monstros sem igual. Nelson da Luz feriu os vitorianos naquela noite, fere muitas vezes quando não consegue o quadro perfeito. É o preço a pagar por poder, depois, tê-lo a encontrar os caminhos que só ele encontra, a chegar aos destinos que só ele consegue encontrar. Poderia escrever aqui que é preciso paciência para ele, mas não o direi. Direi apenas que é preciso amor. A arte é uma questão de amor. Só alguém apaixonado percebe um poema, ou a loucura de um golo. E de amor percebem os vitorianos.
Quem diz que amar um clube é uma questão de desporto não percebe nada de desporto, e muito menos de amor.
Quando Nelson da Luz entra em campo e pisa a relva do Afonso Henriques, não estamos a ver, como queremos ver em todos os outros, um soldado de sangue nos olhos a entrar no campo de batalha; estamos a ver o génio diante da folha em branco. Quando o aplaudimos, estamos a aplaudir o que ele nos dá, o que ele dá ao clube. Mas quando o assobiamos não estamos só a assobiar o que ele não nos deu; estamos a assobiar, desde já, o que ele não vai sentir confiança para voltar a dar-nos.
Se há algo de que um génio precisa é de mimo.
Aqui tens o meu, Nelson.
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no jornal DESPORTIVO DE GUIMARÃES desta semana. Quem não o comprar é um ovo podre.
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