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quarta-feira, junho 01, 2022

Artigo

 Texto de Aníbal Cavaco Silva
(Publicado hoje no Observador)

“Faço parte de uma geração que se bateu contra uma maioria existente que, tantas vezes, se confundiu com um poder absoluto” (Primeiro-Ministro António Costa no discurso de tomada de posse do XXIII Governo)

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Senhor PRIMEIRO-MINISTRO: quero começar por lhe pedir desculpa pelo atraso com que o felicito publicamente pela conquista da maioria absoluta nas eleições de 30 de Janeiro. Foi uma vitória da sua pessoa como líder do PS. Somos agora colegas no que à conquista de maiorias absolutas diz respeito.
É certo que beneficiou dos erros do PSD e da benesse do PCP e do BE ao chumbarem o orçamento do Estado para 2022, mas ninguém lhe pode tirar o mérito. Como se recorda, também eu beneficiei de uma benesse na conquista da primeira maioria, em julho de 1987: a aprovação pela Assembleia da República da moção de censura ao governo apresentada pelo PRD.
Quanto à conquista da minha segunda maioria, tendo obtido 50,6% dos votos, talvez V. Exa. reconheça que se deveu à obra realizada pelo governo. Estou, aliás, convicto de que o senhor Primeiro-Ministro é capaz de fazer mais e melhor com a sua maioria absoluta e não tem qualquer razão para ter complexos.
Contudo, penso, modestamente, que no tempo das minhas maiorias absolutas foram dados alguns passos que abriram novas perspetivas à sua geração e que facilitam agora a tarefa do seu governo. Receio que, na excitação da tomada de posse, se tenha esquecido de que vários desses passos resultaram do diálogo e do consenso com o seu partido.
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Como é sabido, depois de um forte combate eleitoral entre dois grandes partidos apodera-se do derrotado um certo ressentimento que o leva a fugir ao diálogo construtivo com o partido vencedor. Foi o que aconteceu com o PS nas três eleições legislativas que tiveram lugar durante o meu mandato como líder do PSD.
Foi, por isso, necessária muita persistência da parte dos meus governos para estabelecer alguns consensos importantes com o seu partido. Sublinho-os seguidamente apenas como estímulo para que o seu governo faça mais e melhor.
Destaco, em primeiro lugar, as revisões constitucionais de 1989 e de 1992 que acompanhei de perto e em que me envolvi diretamente. Na primeira, era líder do PS Vítor Constâncio e na segunda António Guterres.
Lembra-se certamente que a parte económica da Constituição que então vigorava não era compatível com o desafio da integração europeia. Mas já não sei se teve conhecimento da intensidade e da profundidade do diálogo entre os representantes do PS e do PSD tendo em vista alcançar o indispensável consenso.
Quando nos últimos anos observava o nível de crispação partidária e a rudeza da linguagem nos debates entre os responsáveis políticos na Assembleia da República, mais vinha à minha memória a cordialidade, a urbanidade e o respeito mútuo que sempre imperou nas minhas múltiplas reuniões com os líderes dos partidos da oposição (Vítor Constâncio, Jorge Sampaio, António Guterres, Adriano Moreira, Freitas do Amaral, Álvaro Cunhal, Carlos Carvalhas, Ramalho Eanes e Hermínio Martinho) e a dignidade e o sentido do interesse nacional que marcou a cerimónia em que eu e o líder do PS assinámos o histórico acordo político de revisão constitucional.
Recordo-lhe também que as posições do meu governo nas complexas negociações do Tratado de Maastricht tiveram o apoio do PS, fruto do diálogo permanente mantido com o seu líder.
Lembro-lhe ainda que, fruto do espírito de diálogo com a oposição, foram aprovadas com o voto favorável do PS a Lei de Bases do Sistema Educativo que aumentou a escolaridade obrigatória de 6 para 9 anos, a nova Lei das Finanças Locais, a Lei da Autonomia Universitária, a primeira Lei de Bases do Ambiente, a Lei do Mecenato Cultural, a Lei de Segurança Interna, os novos Códigos Penal e das Sociedades Comerciais, o Código do Procedimento Administrativo e a Lei de Bases dos Transportes Terrestres.
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Quero também lembrar-lhe o intenso, profundo e frutuoso diálogo dos meus governos de maioria absoluta com os parceiros sociais. Foram assinados quatro acordos de concertação social e só não foram assinados mais dois porque o líder do seu partido coagiu e pressionou a UGT, como o líder da central sindical publicamente reconheceu.
Pelo que observei nos seis anos de governo da “geringonça”, V. Exa. considera certamente um exagero o meu entusiasmo e valorização do diálogo e da concertação social.
Sendo meu desejo que faça mais e melhor, recordo que ela muito contribuiu, no tempo dos meus governos, para a redução da inflação, o aumento real dos salários e das pensões, a elevada taxa de crescimento da economia e para a aproximação do país ao nível médio de desenvolvimento da UE como nunca mais voltou a acontecer, como o atesta a informação internacional disponível.
Acrescento apenas que, ao contrário do que V. Exa. recentemente referiu numa entrevista, não defendo a desregulação do mercado de trabalho. Leu mal o meu artigo.
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Uma das reformas que gostaria de ter feito em consenso com o PS, e que foi uma das mais marcantes das minhas maiorias absolutas, foi a abertura da televisão à iniciativa privada e a liberalização da comunicação social.
O PS, surpreendentemente e não sei com que intenções, revelou-se contra o fim da anacrónica situação em que o Estado português detinha o controlo total ou quase total de cinco jornais diários e de um jornal desportivo e em que, no sector da radiodifusão, só a Rádio Renascença lhe escapava.
Espero que, hoje, V. Exa. reconheça que era um quadro redutor da liberdade de expressão e informação e atrofiador da sociedade civil.
Para o PS era então estranho que o governo quisesse afastar o Estado de um instrumento tão suscetível de influenciar a opinião pública e importante para a preservação do poder. O senhor Primeiro-Ministro sabe que nunca tive jeito ou apetência para a arte de sedução dos jornalistas e que, ainda hoje, muitos deles não gostam de mim, o que nada me incomoda. Esta é uma área em que V. Exa. é, e continuará a ser, muito melhor do que eu.
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A reforma fiscal de 1989, que instituiu o IRS e o IRC, substituindo sete impostos sobre o rendimento então existentes, levada a cabo pelos meus governos, foi uma outra que gostaria de ter realizado em consenso com o PS.
Apesar de ter sido preparada por uma comissão de reconhecida competência técnica e do intenso diálogo e de toda a informação disponibilizada às forças políticas e sociais, o PS decidiu agarrar-se à ideia falsa de que as pessoas iriam pagar mais impostos e ficar fora da reforma.
Sendo o atual sistema de impostos caracterizado pela iniquidade, ineficiência económica e pela brutalidade da sua carga para o nosso nível de desenvolvimento, estou certo de que V. Exa. atuará melhor do que eu no diálogo com os partidos e organizações sociais e deixará na história da fiscalidade portuguesa uma marca reformista que ultrapassará em muito a dos meus governos de maioria absoluta.
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Imagino que, hoje, o senhor Primeiro-Ministro, tenha dificuldade em perceber porque é que o PS se opôs à aprovação, em 1987, da nova lei de gestão hospitalar, e, em 1990, da Lei de Bases da Saúde que abriu à iniciativa privada a prestação de cuidados de saúde e que se manteve em vigor durante 29 anos, resistindo a cinco governos do PS, seguramente por a considerar uma boa lei.
Face à deterioração da qualidade dos serviços prestados pelo Serviço Nacional de Saúde durante o tempo do governo da “geringonça”, estou certo de que ao seu governo de maioria absoluta não faltará a coragem para fazer mais e melhor do que foi feito pelos meus governos na área da saúde.
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Em relação à reprivatização de 38 empresas públicas levada a cabo pelo meu governo de maioria absoluta, tendo 70% da receita obtida pelo Estado sido destinada à redução da dívida pública, que, em geral, contou com a oposição do seu partido, estou certo de que V. Exa., um europeísta, pensa, agora, “ainda bem que o fizeram”, embora, em público, lhe custe reconhecê-lo. São coisas da vida partidária.
Tratou-se de uma reforma estrutural da maior relevância, tornada possível pela eliminação do princípio da irreversibilidade das nacionalizações na revisão da Constituição de 1989.
Pressuponho, como é óbvio, que V. Exa. não esqueceu que, em resultado das nacionalizações de 1974 e 1975, o sector público empresarial português tinha uma grandeza sem paralelo na Europa comunitária e acumulava prejuízos gigantescos, um fardo enorme para consumidores e contribuintes e um obstáculo à recuperação económica.
Com certeza que também não se esqueceu da importância da aprovação da nova Lei de Bases da Reforma Agrária que estabilizou o direito de propriedade e exploração da terra, sem o que a agricultura portuguesa não conseguiria adaptar-se aos mecanismos da Política Agrícola Comum (PAC). Lembra-se do coletivismo agrícola que imperava no Alentejo em que existiam 330 unidades coletivas de produção?
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Dirá o senhor Primeiro-Ministro que a falta de apoio do PS a algumas das reformas se deveu à inabilidade ou à insuficiência de diálogo dos meus governos e a erros por mim cometidos. É provável que tenha alguma razão. Costumo dizer: “nobody is perfect”.
Sendo conhecida a sua vontade de fazer reformas e habilidade no diálogo com o maior partido da oposição no sentido de as concretizar, estou certo que, com o seu governo de maioria absoluta, tudo correrá na perfeição.
Nenhum partido, nenhuma organização sindical, empresarial, social, cultural ou ambiental se queixará de falta de diálogo e de abertura do governo para aceitar as suas propostas; as reformas que o país urgentemente necessita serão feitas em clima de toda a tranquilidade política e a decadência relativa do país em termos de desenvolvimento será revertida.
As revistas internacionais deixarão de classificar Portugal como “uma democracia com falhas” e os articulistas deixarão de acusar o seu governo de “bullying”, assédio ou asfixia da democracia e de que, para os socialistas, o Estado é deles.
Parafraseando a afirmação de V. Exa. no discurso de tomada de posse direi: “Faço parte de uma geração que se bateu contra a estatização da economia, a atrofia da sociedade civil e a queda do poder de compra dos portugueses e que se orgulha de ter contribuído para dar um passo significativo na aproximação do país ao nível médio de desenvolvimento da UE”.
Agora, retirado da vida política ativa mas preservando os meus direitos cívicos, estou certo de que, encerrada a fase da “geringonça”, o seu governo de maioria absoluta fará mais e melhor do que as maiorias de Cavaco Silva.

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