Depois Falamos.
Todos sabemos que o futebol é, por excelência, um desporto que gera fortes emoções, desenvolve paixões sem igual e tem em seu torno uma corrente emocional que mais nenhuma modalidade consegue atingir.
Mas é também uma modalidade que se alimenta do momento, na qual a
gratidão é excepção e não regra, a memória débil e onde o bestial passa a besta
e o amado a odiado com uma velocidade fulminantes que por vezes até atordoa
aqueles que gostam de apesar de tudo manterem alguma racionalidade na sua
paixão pelo futebol.
De igual forma trata-se de um desporto que convive mal com o erro, que
faz da desculpa o pão nosso de cada dia, em que o alijar de responsabilidades
faz parte de uma coreografia muito própria de quem nele participa.
Dirigentes, jogadores e treinadores.
E é precisamente neste último caso, o dos treinadores, que a forma de
o futebol ser tem um impacto mais directo, em que o modo como é vivido tem uma
repercussão mais directa, porque em mais nenhuma profissão ligada à modalidade
o “momento” é tão importante nem a facilidade passar de bestial a besta tão
evidente na genial imagem criada há muitos anos por Cândido de Oliveira.
Em Portugal, então, onde já se viu despedir treinadores há segunda ou
terceira jornada (Artur Jorge no Benfica) ou mesmo antes de a época começar (Di
Stéfano no Sporting e Del Neri no Porto) para citar apenas os clubes “donos
disto tudo” a facilidade com que se passa de bestial a besta é assombrosa como
se pode constatar época após época pelo número de treinadores substituídos.
Por todos os motivos.
Normalmente para tentar evitar descidas de divisão mas também porque a
luta pelos lugares europeus ou pelos títulos não está a correr bem e por isso
sendo o treinador o elo mais fraco há que partir a corda precisamente por aí.
Até porque é mais difícil substituir um plantel quase por inteiro e
menos ainda ver dirigentes assumirem as suas responsabilidades e irem embora
quando as épocas correm de forma bem diferente do planeado (e prometido) e
longe de satisfazerem as ambições dos adeptos.
E é precisamente nos treinadores que o que atrás escrevemos sobre a
ausência de gratidão e de memória tem mais significado.
Veja-se os casos recentes de Jorge Jesus empurrado para fora do
Benfica depois de seis anos de bons resultados e saindo como campeão, de Vítor
Pereira que ganhou dois títulos consecutivos no Porto e levou a respectiva guia
de marcha ou de Inácio e Boloni despedidos pouco depois de se iniciarem as
épocas seguintes aquelas em que tinham sido campeões pelo Sporting para se
perceber até onde vai a importância do “momento” e a falta de gratidão e de
memória.
Nos últimos dias o mundo do futebol teve mais um brutal exemplo disso.
Cláudio Ranieri, “inventor” e maestro do Leicester campeão (algo que
parecia tão impossível que quem nisso apostou ficou milionário) após uma época
inesquecível, iniciou a presente temporada com avisos claros de que seria
praticamente impossível repetir o feito e que este ano a prioridade seria uma
boa carreira na Liga dos Campeões.
Pese embora ter mantido os principais jogadores como Vardy, Mahrez ou
Kasper Schemeichel e ter efectuado algumas contratações como por exemplo
Slimani a verdade é que Ranieri sabia que seria impossível repetir o título.
Por um lado porque uma equipa que joga toda uma época em permanente
atitude de superação física e emocional (só assim foi possível ganhar um
campeonato em que não tinha o melhor plantel nem nada que se parecesse) sofre
um desgaste de tal ordem que é difícil voltar a atingir os mesmos índices na
época seguinte e por outro porque apanhar os tradicionais candidatos
“distraídos” uma vez consegue-se mas duas já é pedir demasiado.
A verdade é que cumprindo o objectivo europeu (está nos oitavos de
final da Champions e com francas possibilidades de seguir em frente depois do
1-2 de Sevilha) no plano interno a época tem sido desoladora e a equipa está no
fundo da tabela ameaçando cair a qualquer momento nos lugares de despromoção.
E perante este cenário de nada valeu a Ranieri o milagre da época
passada.
O “momento” é mau e por isso nem gratidão, nem memória, nem o apoio do
balneário serviram de nada ao treinador italiano a quem foi apontada a porta de
saída perante a incredulidade geral e a solidariedade de homens do futebol como
José Mourinho, Jurgen Klopp ou Gary Lineker entre outros.
Nem sequer, ironia das ironias, o ter sido consagrado há pouco mais de
um mês pela FIFA como treinador do ano.
“O meu sonho morreu ontem” declarou Ranieri no dia seguinte a ser
despedido.
Na verdade sempre que no futebol se assiste a factos como este, e eles
são infelizmente tão vulgares nos tempos que vivemos, creio que morre um pouco
o sonho de tantos em termos um futebol com outros valores, outra moral, outros
dirigentes.
Je Suis Cláudio Ranieri!
Caro Luís,
ResponderEliminarSempre vi Claudio Ranieri como um "senhor", completamente à parte do folclore em que, nos últimos anos, se tornou o futebol mundial. Por isso fiquei feliz pelo seu feito como treinador do Leicester e gostei de ver a alegria sincera com que ele falou aos jornalistas depois de ter sido campeão. Era uma alegria verdadeira, sincera, modesta, de alguém que estava genuinamente feliz por ter feito algo de extraordinário. Vi o júbilo das gentes de Leicester e dos jogadores que comunhavam da mesma alegria genuina.
Por isso estranhei a atitude dos donos do clube, quando tomaram a atitude que tomaram. Uma atitude que surpreendeu todos no clube, mas que mostrou que a massa associativa, os jogadores e funcionários do clube estavam ao lado de Ranieri.
Pena é que, tal como dizes no teu artigo não se possa "...ver dirigentes assumirem as suas responsabilidades e irem embora quando as épocas correm de forma bem diferente do planeado (e prometido) e longe de satisfazerem as ambições dos adeptos."
E que bom seria se esta ideia fosse uma realidade, tanto para o Leicester, como para muitos outros casos que nos estão bem mais perto e nos tocam bem mais o coração.
Caro Saganowski:
ResponderEliminarConcordo inteiramente com o que escreveste sobre Ranieri.
Mas o futebol é assi. E repara que no primeiro jogo sem ele venceram o Liverpool por 3-1.
Quanto ao resto é evidente que no futebol os ultimos a pagarem pelos insucesssos (e quando pagam...) são os dirigentes. Antes pagam treinadores, jogadores, árbitros e até equipas médicas.
Quanto muitas vezes o insucesso é de exclusiva responsabilidade de quem dirige.